6.11.07

CO2 - BRUXELAS AO INFINITO | ENSAIO 1

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"O ESTRANGEIRO E O FLÂNEUR" - Por Nicholas Petrus

“A certa altura, Raimundo disse a Masson qualquer coisa que eu não consegui ouvir muito bem. Mas destingui ao mesmo tempo, no fim da praia e muito longe de nós, dois árabes vestidos de azul, que vinham em nossa direção. Olhei para Raimundo, que me disse – É ele. – Continuamos a andar. Masson perguntou como é que eles nos podiam ter seguido até aqui. Pensei que nos tinham visto tomar o ônibus com um saco de praia, mas não disse nada.”

“Os árabes avançavam lentamente e estavam já muito mais perto. Não modificamos o nosso andamento, mas Raimundo disse: - Se houver pancada, tu, Masson ficas com o segundo. Eu encarrego-me do outro tipo. Tu, Meursault, se vier outro árabe, é para ti. – Respondi: - Está bem – e Masson meteu as mãos nos bolsos. A areia a ferver parecia-me agora vermelha. Avançávamos no mesmo passo dos árabes.”

[...] “Não percebi muito bem o que lhe disse, mas o outro fez menção de lhe dar uma cabeçada.
[...] Masson dirigiu-se ao que lhe fora destinado e deu-lhe dois socos com toda a força. [...] Gritei-lhe: - Atenção, o tipo tem uma navalha!”

[...] “Durante todo este tempo, havia o sol e este silêncio, com o leve ruído da nascente e das três notas musicais.” [...]

[...] “Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Voltei então a disparar mais quatro vezes contra um corpo inerte, onde as balas se enterravam sem se dar por isso. E era como se batesse quatro breves pancadas, à porta da desgraça.”

Trechos selecionados do final da primeira parte do livro de Albert Camus “O Estrangeiro”, onde há a construção do momento de ruptura do personagem. Neste momento há o duplo estrangeiro, tudo se confunde. O trecho se passa na Argélia, antiga colônia francesa, o personagem depois disso, passa por um estrangeiro na prisão de um país distante. Por outro lado considerou a praia, por um instante, como sua pátria e não dos árabes, a sua identidade é que ditava a sua ação. No livro é citado que a praia era a mesma que o personagem freqüentava na infância.

“Segunda-feira. Deitar muito tarde na véspera. Acordar cedo demais. Subimos o porto de Nova York. Espetáculo formidável, apesar de, ou até por causa da bruma. A ordem, o poderio, a força econômica estão lá. O coração treme diante de tanta desumanidade admirável.”
“Só desembarco às 11 horas, após longas formalidades, em que sou o único dos passageiros tratado como suspeito. O oficial da imigração acaba desculpando-se por me haver retido tanto tempo. ‘Fui obrigado a isso, mas não lhe posso dizer por quê.’ Mistério, mas depois de cinco anos de ocupação!”

“Cansado. Minha gripe volta. E é com as pernas bambas que recebo o primeiro impacto de Nova York. À primeira vista, cidade horrenda e desumana. Mas sei que se muda de opinião. São os detalhes que me impressionam: os lixeiros de luvas, o trânsito disciplinado, sem intervenção de guardas nos cruzamentos, etc., ninguém nunca tem troco neste país e todo mundo parece sair de um filme de seriado. [...] Deito-me doente, tanto do coração quanto do corpo, mas sabendo perfeitamente que terei mudado de opinião em dois dias.”

Citação do livro “Diário de Viagem”, também de Camus. O livro é o relato pessoal do autor de suas experiências como um estrangeiro em Nova York e na América do Sul, especificamente o Brasil. Seleciono este trecho, pois revela a chegada e a primeira impressão do autor diante do estrangeiro. No porto a alfândega e a cidade espetacular, porém opressora. O olhar neste ponto é carregado de identidade européia, e o indivíduo realiza a imediata comparação com sua “terra natal”.

“Um amigo meu falastrão define uma cidade grande como um lugar onde há negros e prédios altos e você pode ficar acordado a noite inteira.”
“O último dos grandes flâneurs literários foi Walter Benjamin. Num ensaio de 1929 ele escreve:

‘O flâneur é criação de Paris. Espanta é que não seja de Roma. Mas talvez em Roma até mesmo os devaneios tenham de se mover por ruas bem pavimentadas demais. E não seria a cidade muito cheia de templos, praças confinadas e santuários nacionais para poder ingressar integralmente nos devaneios do passante, junto com cada pedra do calçamento, cada placa de loja, cada lance de escada, cada portal? As grandes reminiscências, os frissons históricos – isso não passa de entulho para o flâneur, que deixa tudo de bom grado para o turista. O flâneur também trocaria de bom grado todo o seu conhecimento sobre os bairros de artistas, locais de nascimento e palácios principescos pelo cheiro de uma soleira de porta exposta às intempéries ou pelo toque de um único azulejo – coisa que qualquer cão velho carrega consigo. Muito disso deve ter a ver com o caráter romano. Pois não são os estrangeiros, mas eles mesmos, os parisienses, que fizeram de Paris a Terra Prometida dos flâneurs, uma ‘paisagem feita de gente viva’. Como Hofmannsthal chamou-a uma vez. Paisagem – é isso que a cidade se torna para o flâneur. Ou, mais precisamente, a cidade se divide em seus dois pólos dialéticos. Torna-se uma paisagem que se abre para ele e uma sala de estar que o encerra.’

“Num único parágrafo compacto Benjamin assinala a exata natureza do flâneur. Ele (ou ela) não é um turista entusiasmado perseguindo as grandes vistas e riscando-as de uma lista de maravilhas padronizadas. Ele (ou ela) é um parisiense em busca de um momento íntimo, e não de uma aula, sendo que as maravilhas, por um lado, podem ser edificantes, por outro não chegam a dar arrepios no observador. Longe disso, o flâneur está no encalço é da pedra de toque proustiana – a madeleine, o calçamento irregular de pedras... [...]”
“Seja como for, segundo Benjamin explica, o flâneur procura experiência, não conhecimento.”

Selecionamos também alguns trechos do livro de Edmund White, “O Flâneur – Um Passeio Pelos Paradoxos de Paris” não meramente por acaso, mas por justamente estar incorporado em todo estrangeiro uma pincelada, um toque de um flâneur. Este personagem anônimo que se desloca pela cidade de acordo com sua curiosidade pictórica, desviando do lógico, entregue ao lúdico, redescobre no espaço urbano a existência plena da humanidade.
Há uma mescla de existencialismo e fenomenologia no comportamento do flâneur, carente de “intimidades” a serem descobertas, ou absorto apenas pela inesgotável grandeza da história de uma pedra no calçamento. O flâneur busca o ímpar no par e o par no ímpar, se entrega e é invadido pela cidade que desvenda.

A condição do estrangeiro e do flâneur são apontamentos para a compreensão de elementos que permeiam a situação dos artistas residentes em Bruxelas, momentos emocionais do indivíduo quando percorre uma nova cartografia urbana. A condição de “estar fora de sua terra” possui um elemento unificador, e o sentimento de estranhar a realidade, de se deslumbrar com o detalhe, de sentir-se perdido e localizado ao mesmo tempo e etc., são emoções recorrentes no estrangeiro.

O artista como estrangeiro e o artista como um indivíduo reprodutor de uma cultura própria, revelam a mostra CO2 – Bruxelas ao Infinito como um ponto de convergência de identidades estéticas distintas, de memórias visuais diferentes, conferindo à própria exposição um caráter dialético na unidade da mostra pelo tema documental urbano e na expansão dada pela carga criativa individual de cada artista participante. Bruxelas se torna a pátria do outro, um espaço aberto ao olhar das testemunhas do sentimento estrangeiro e das experiências do flâneur.


A exposição CO2 - Bruxelas ao Infinito apresenta 19 fotógrafos que participaram do programa de residência do projeto Contretype de documentação urbana.

A mostra está aberta até o dia 11 de Novembro.
ENTRADA FRANCA

  • MAB - Museu de Arte Brasileira

  • Rua Alagoas, 903
    Higienópolis
    São Paulo

    PROGRAMA DE RESIDÊNCIA | BÉLGICA
  • Contretype


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